Separação e Ausência

Nesse breve ensaio, discuto as oportunidades que a separação e a ausência nos proporcionam no plano afetivo.

Henrique Mota
3 min readMar 12, 2019

Na obra de Escher, a ausência é oportunidade de produzir formas.

Michel Foucault, em sua visão sobre a autoria no texto literário, muito esclarecida por Giorgio Agambem, apresenta curiosa visão sobre o que é o autor. Diferentemente de nome próprio, o que ele apelida de “função-autor” não se trata de uma figura histórica, mas sim algo que se situa no limite dos textos. Dessa maneira, a marca do autor não é a forma como ele aparece no texto, como ator produtor de significado, mas sim como princípio funcional que acaba por interromper a livre circulação da ficção. Na sua forma própria de desaparecer, o autor deixa uma marca singular. De forma clara, Foucault enuncia: "A marca do escritor reside unicamente na singularidade da sua ausência”.

Embora Foucault limite isso ao discurso literário, penso que essa visão muito diferente de autoria também pode ser generalizada para outros tipos de discurso e de experiências de vida. Acredito que isso ocorra também em todo tipo de relação sentimental humana. Seja por força das Leis da Natureza, tal como o final que espera todos os homens de carne e osso, seja por força da lei dos homens, isto é, por iniciativa consensual entre dois indivíduos que preferem seguir rumos diferentes, a separação de entes queridos, amigos e namorados é também oportunidade maior de sentir sua marca. Sentir sua marca no seu desaparecer.

É interessante, quando perdemos um parente carinhoso, que só damos conta de sua identidade no momento em que eles se vão. Os biscoitos daquela tia avó, o beijo na testa do seu avô, ou o cafuné cuidadoso de uma mãe nem sempre são valorizados enquanto eles ainda são uma possibilidade. No entanto, quando essa pessoa desaperece de nossa existência, sentimos nítida noção de autoria, de uma identidade formada pelo seu desaparecer.

O mesmo pode valer para um(a) namorado(a) ou amigo(a) que se foi. Sua marca, sua autoria nas nossas vidas, pode ser sentida quando a pessoa se vai. Seu abraço, seu beijo, seu toque, seu conversar, seu conselho; quando isso falta podemos perceber melhor esse autor de afetividade.

Creio que essa sensação que a ausência gera só se dá por conta de vetor que opera na direção contrária, a força da regularidade, que cria hábitos e nos faz não conseguir distinguir os múltiplos indivíduos que passam num fluxo contínuo de interações sociais. Note que não é conseguir identificar “estados civis” ou “RGs”, trata-se da dificuldade que o hábito cria de compreender a singularidade dos indivíduos. Para que percebamos uma obra de arte no mármore, é preciso que haja ausência de fragmentos de pedra. Talvez uma forma de perceber a singularidade das pessoas seja pela ausência das mesmas em nossas interações sociais do dia a dia ou na falta que elas nos trazem no plano afetivo.

Não pretendo dizer que a única maneira que podemos compreender a marca de uma pessoa nas nossas vidas é por meio da ausência. Acredito que a novidade, que irrompe a regularidade cotidiana, por exemplo, é uma forma de reparar marcas dos indivíduos, que ficarão numa memória afetiva e nos lembrarão daquele indivíduo nas suas singularidades,mesmo antes de qualquer separação. A separação não precisa ser física, pode ser mero exercício mental, uma ausência pensada. Por exemplo, o ato filosófico da solidão é ação voluntária e puramente reflexiva de separação consigo mesmo, para compreender a marca de nossa ausência no tecido social e na espaço-tempo do mundo físico.

Esta visão de autoria de Foucault, portanto, talvez seja uma lição maior para nossas vidas. A separação é sempre momento melancólico e doloroso, mas também é janela de oportunidade para repararmos a marca do outro na singularidade do seu desaparecer. Se a pessoa querida já se foi, o seu desaparecer é um convite para construir uma memória afetiva mais detalhada e mais rica daquela individualidade. Se a separação, contudo, se deu pela lei dos homens, é um convite à reconciliação ou tomada de consciência que certifica que a separação foi ato correto, mesmo que ainda se preserve carinho ou afetividade. Talvez doa num primeiro momento, talvez haja um impulso imediato de voltar a “tudo como era antes”, mas não percamos as oportunidades que a Separação e a Ausência nos dão.

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Henrique Mota

Economics PUC-Rio (2015- 18), Master in Economics PUC-Rio (2019 - 21). Progressive. He/him